sexta-feira, 1 de março de 2013

Contribuições da Escola Brasileira de Psicanálise ao documento do Ministério da Saude que estabelece a linha de cuidado para atenção integral às pessoas com transtorno do espectro do autismo.


Comentários sobre o documento Linha de cuidado para a atenção integral às pessoas com transtorno do espectro do autismo. 


Nós, da Escola Brasileira de Psicanálise do Campo Freudiano, dedicamos muito interesse ao documento LINHA DE CUIDADO PARA A ATENÇÃO INTEGRAL ÀS PESSOAS COM TRANSTORNO DO ESPECTRO DO AUTISMO E SUAS FAMÍLIAS NO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE. Buscamos, em nossa leitura, apreender os pontos destacados neste texto e pensar uma maneira de contribuir com esse trabalho. Nosso interesse se justifica pelo grande número de membros de nossa Escola que se dedicam há vários anos ao estudo e ao tratamento clínico de sujeitos incluídos nesse espectro ou de seus familiares.
Consideramos esse documento um avanço na busca da boa política de tratamento dos sujeitos autistas, especialmente porque os autores tomam a conclusão, a partir de um panorama histórico, de que “a noção do que é o Transtorno do Espectro do Autismo ainda está em aberto”.
Essa abertura, muito favorável à investigação clínica, implica também que “a ética do campo público seja ao mesmo tempo rigorosa e flexível para dar acolhida a diferentes concepções sobre esse quadro”. De fato, consideramos este trabalho fundamental para que a sociedade acolha as particularidades desses sujeitos “fora das normas” e para que eles possam se incluir dentro de uma relativa normalidade em seu ambiente a partir da maneira particular de estar no mundo que eles possam encontrar.
Como princípio geral de um tratamento psicanalítico aos sujeitos autistas, formalizado ao longo de décadas de experiência clínica por nossa comunidade internacional de trabalho, especialmente nas instituições que a integram e que se dedicam a este atendimento, deve-se "entender, em primeiro lugar, que o isolamento da criança autista não é um handicap que é preciso vencer, senão que é a própria defesa que o sujeito construiu para se proteger de um entorno que ele percebe como ameaçador. Ele não dispõe de aparelhos simbólicos que lhe permitam ordenar o mundo da mesma maneira que os outros, e por isso o tratamento deve ser feito por profissionais que saibam situar-se de um modo não ameaçador e que sejam respeitosos com os recursos que o sujeito autista dispõe. É ele que sabe como tratar seu mal-estar, ainda que às vezes não seja suficientemente exitoso. Por isso, é necessário que aqueles responsáveis pelo atendimento estejam atentos ao que o sujeito constrói, ou tenta construir, para oferecer-lhe propostas que ele possa aceitar" (conforme exposto no site www.autismos.es, que retrata a experiência da comunidade reunida na Associação Mundial de Psicanálise, da qual a Escola Brasileira de Psicanálise faz parte).

Há aspectos muito importantes destacados no documento cuja orientação nos parece bastante positiva.

1 – “Quanto mais precoce for o início de um transtorno mental, maior será o risco de ele se estabilizar e se cronificar”.
Concordamos em pensar que desde muito cedo esses sujeitos apresentam sua forma particular de recusar o Outro, seja o toque, a presença, o olhar, a voz. Assim, buscar modos de tratar essa recusa o mais cedo possível nos parece muito importante, já que com a idade fica mais difícil romper a recusa de fazer uso da palavra e quando mais jovem a plasticidade, inclusive neuronal, é maior. Neste sentido, a “atenção” aos sinais e sintomas que a criança pode apresentar desde bebê viabiliza um melhor “prognóstico”.
A experiência de psicanalistas em troca interdisciplinar verificou que uma intervenção sobre uma cuidadora na creche, por exemplo, permite que o balbucio de uma pequenina menina não seja escutado através de uma “cartilha”. Este trabalho orientado das cuidadoras pode trazer muito benefício na escuta e acompanhamento do que se passa com essas crianças.

2 – A busca de um diagnóstico que oriente o tratamento.
“No caso dos indivíduos com Transtorno do Espectro do Autismo, a ampla variação da expressão sintomática requer a obtenção de informações que ultrapassam em muito o diagnóstico categorial, tais como o nível de comunicação verbal e não verbal, o grau de habilidades intelectuais, a extensão do campo de interesses, o contexto familiar e educacional, e a capacidade para uma vida autônoma”.
“O processo de diagnóstico é o momento inicial da construção do projeto terapêutico singular que será alinhavado a partir das características específicas da família e não apenas das dificuldades ou sinais psicopatológicos da pessoa em questão. É necessário pensar em estratégias para incluir a família, os irmãos, avós e a comunidade no projeto terapêutico”.
A busca diagnóstica é a busca não de um índice de deficiência irremediável, ou de algo ameaçador para o próprio sujeito. Queremos encontrar os índices de sofrimento do sujeito e de sua tentativa constante para solucionar o que sem cessar o ameaça e invade. Deste diagnóstico dependem as maneiras de dar chances para que o sujeito encontre melhores soluções para se incluir no mundo. Isso é uma aposta em que estas crianças não estão programadas para permanecerem da mesma maneira durante toda a sua vida e de que devemos dar-lhes possibilidades de inventarem outras soluções.
Muitas vezes profissionais e pais têm buscado a avaliação diagnóstica para amenizar suas angústias frente ao singular do sintoma da criança ou do adolescente. Pareceu-nos importante cuidar para que o diagnóstico vise à orientação a ser dada ao tratamento e que sua comunicação à família seja feita, quando necessário, da maneira mais cuidadosa possível, já que os efeitos mortíferos desta comunicação são frequentemente observados. Há também um importante trabalho no sentido de acolher o sujeito e sua família nesse processo.
A experiência de trabalho de psicanalistas em troca interdisciplinar recolheu o testemunho de pediatras, educadores e assistentes sociais sobre como a escola hoje busca responder à angústia dos pais fazendo ela mesma o diagnóstico, através de testes que respondem SIM ou NÃO para a presença de sintomas e, ao final, “contam os pontos” e classificam o sujeito. O diagnóstico que pode orientar o trabalho com essas crianças não pode se reduzir a um sim ou não classificatório, que certamente não ajuda a reduzir a angustia dos pais O cuidado em orientar as escolas a tratar desta questão com toda delicadeza necessária é fundamental. Assim, abre-se a possibilidade de um tratamento que inclua a criança e não faça dela um elemento de um conjunto universal no qual ela perderia toda a sua singularidade.

3 – A inclusão da família e dos diversos profissionais que se ocupam desse sujeito
“De fato, é preciso admitir que o enfrentamento de todos esses problemas e riscos só poderá ser realizado de forma efetiva através de um processo contínuo de discussão e negociação entre os diversos atores envolvidos, a saber: pessoas com Transtorno do Espectro do Autismo, seus responsáveis e familiares, profissionais da saúde, da educação, da assistência social e da seguridade social, pesquisadores, planejadores e gestores”.
Não há uma solução standardizada para o sujeito e é nessa troca ampla que o interesse e o apoio que essas crianças necessitam poderá ser dado. O fundamental é encontrar uma maneira de ser parceiro do trabalho que a criança faz em torno do que a aflige e de suas dificuldades. Encontrar a maneira de ser outro para esses sujeitos é uma tarefa difícil para os familiares e os profissionais e são as observações e a leitura dos detalhes de cada caso que poderão nos orientar.
Na nossa experiência, notamos que as conversações interdisciplinares para discutir sobre os impasses na prática dos profissionais e familiares podem vir a ser uma via de produção de um saber-fazer inédito a respeito de cada impasse, dificuldade, podendo transmitir uma orientação, sem se transformar em um método de trabalho rígido, um padrão, uma etiqueta.

4 – O acompanhamento das famílias, já que a lógica que orienta cada um desses sujeitos tem uma particularidade que precisa ser constantemente repensada. O saber dos pais e o direito ao saber fazem com que um laço de trabalho seja possível, onde todos estão implicados e os profissionais podem acolher as soluções que já foram encontradas e buscar outras. O objetivo, além disso, é possibilitar que as pessoas da família possam ser parceiros dessas crianças, que muitas vezes fazem uso do outro como um duplo para se relacionarem com o mundo. Acompanhar essa maneira de se fazer disponível para os autistas nos parece fundamental.
“A história de vida da família que procura ajuda com uma pessoa com Transtorno do Espectro do Autismo, assim como as circunstâncias vividas por ela e pelos seus familiares são fundamentais para o processo diagnóstico e para a construção do seu projeto terapêutico singular. Esse processo precisa ser construído por uma equipe multidisciplinar e discutido passo a passo com a família. A implicação dos familiares durante todo processo diagnóstico e nas diversas intervenções será fundamental para evitar minimizar o choque que acomete uma família com uma simples comunicação do diagnóstico”.

5 – O cuidado de incluir os distintos campos de saber e práticas clínicas no sentido de que o tratamento dos autistas concerne a todos.
Bem extenso e detalhado, o documento não privilegia nenhuma técnica ou teoria para tratamento do Espectro do Autismo, em consonância com o que ressaltamos: a importância de um trabalho interdisciplinar em que cada campo contribua com seu saber construído e se abra tanto para os outros saberes, quanto para o que de inédito possa surgir.
“A pluralidade de hipóteses etiológicas sem consensos conclusivos, a variedade de formas clínicas e/ou co-morbidades que podem acometer a pessoa com Transtorno do Espectro do Autismo, exigem o encontro de uma diversidade de disciplinas. Sendo preciso avaliar a real necessidade de exames neurológicos, metabólicos e genéticos que podem ou não complementar o processo diagnóstico”.
“Atos que se apresentam muitas vezes sem lógica, de forma repetitiva, estereotipada, podem ser formas possíveis de estabelecer contato com o outro, não devendo ser necessariamente suprimidos”.
“Se, como profissionais, conseguirmos acompanhar o que faz cada sujeito, (seja virar a cabeça, tapar o ouvido, se sujar, etc), podemos nos servir desses atos como parceiros para podermos nos aproximar desses sujeitos e mesmo estabelecer laços com eles. Para tanto, é necessário superar o entendimento de comportamentos apenas pelo seu valor aparente, e estar ciente que nem sempre o que se apresenta pode ser o mais óbvio, o mais usual”.
Achamos fundamental levar em consideração as particularidades do sujeito e não querer educá-lo num modelo universal.
Não partir da lógica do para todos, mas querer aprender com as soluções particulares desses sujeitos. Como essas crianças têm que ser constantemente estimuladas, como pensar em tratamento/educação pedagógica em tempo integral, ou num tempo que seguramente vai ser maior do que os das escolas comuns?
É muito importante buscar os espaços nos quais o diálogo com o autista seja possível, pois construir a chance de um diálogo é distinto de estimulá-lo. Nós consideramos que temos algo a dizer-lhes. Neste sentido, os trabalhos em ateliês e oficinas têm se mostrado muito importantes nas construções que essas crianças fazem. Oficinas que não são profissionalizantes, mas que são voltadas para um espaço de encontro com o sujeito autista onde uma construção singular é possível, um por um.

O sentido é que o sujeito possa encontrar uma maneira de dirigir-se ao Outro. Como ajudar a esses sujeitos, para os quais a palavra é devastadora, a encontrar um bom uso da palavra e da escuta? Como construir um laço suportável? Como cuidar para que sua forma particular de tomar os objetos permita sua inclusão na vida e uma boa relação com seu corpo próprio?
Estar atento a estes pontos onde os sujeitos autistas encontram impasses, nos parece essencial para a construção de um projeto de vida para esses sujeitos. Com seu outro familiar, social e escolar.

Uma bibliografia psicanalítica acerca do autismo pode ser encontrada no site www.autismos.es. Este site, a cargo da Fundação Internacional do Campo Freudiano, foi concebido por nossa comunidade para esclarecer e difundir, para a sociedade em geral, questões fundamentais acerca do autismo e os fundamentos de um tratamento clínico ampliado e orientado pela psicanálise. A Escola Brasileira de Psicanálise publicou o livro Autismo(s) e atualidade: uma leitura lacaniana (Belo Horizonte: Scriptum, 2012) no qual recolhe textos que tratam de nossa orientação sobre a questão.

Participaram da elaboração desse texto:
Cristina Drummond (diretora da EBP), Marcus André Vieira (presidente da EBP), Heloísa Prado R. da Silva Telles, Fernanda Otoni de Barros-Brisset, Paula Borsoi, Ana Martha Maia, Angela Duarte de Carvalho, Giselle Fleury, Vanessa Carrilho dos Anjos, Rômulo Ferreira da Silva, Tânia Abreu, Alice Monteiro, Patrick Almeida, Luiz Mena, Luciana Castilho de Souza, Silvia Sato, Cristiana Gallo, Maria do Rosário do Rego Barros, Fátima Sarmento, Simone Souto.

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Link de acesso ao documento  "LINHA DE CUIDADO PARA A ATENÇÃO INTEGRAL ÀS PESSOAS COM TRANSTORNO DO ESPECTRO DO AUTISMO E SUAS FAMÍLIAS NO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE", do Ministério da Saude:
        http://200.214.130.94/consultapublica/index.php?modulo=display&sub=dsp_consulta

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